Propostas punitivas e fiscalistas de avaliação de desempenho ignoram a complexidade do setor público. Nova abordagem valoriza servidores, promove engajamento, reconhece méritos reais e fortalece uma gestão pública mais estratégica
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Com razão, pesquisadores, gestores de pessoas na administração pública e entidades representativas dos servidores e servidoras têm se posicionado de modo contrário aos projetos de Lei (PL’s) e Projetos de Emendas Constitucionais (PEC’s) que buscam instituir mecanismos mais assertivos de avaliação de desempenho individual na Administração Pública Federal (APF).
Corretamente, constatam que todos esses projetos compartilham ao menos três problemas comuns:
i) visão punitivista: visa promover avaliações de desempenho com mecanismos que favoreçam as demissões, ato visto como supostamente moralizante das condutas na administração pública; ii) visão fiscalista: demissões seriam o caminho priorizado para que estas supostas reformas administrativas contribuam para a redução do gasto global com pessoal na APF; e
iii) visão privatista: subjacente nessas propostas estão as ideias de privatização e terceirização de grande parte dos setores estatais (notadamente os rentáveis!) hoje responsáveis pela formulação, implementação e gestão de políticas públicas.
Tudo somado, há então ao menos duas razões para defender outro ponto de vista sobre a questão do desempenho individual no setor público, a saber: i) nada garante que a aplicação do receituário resumido acima implique em melhoria do desempenho individual ou agregado dos servidores, pois de maior eficiência do gasto com pessoal não decorre necessariamente maior eficácia ou efetividade da ação pública; e ii) há distinções claras relativamente aos empregos do setor privado, dada a natureza pública das ocupações que se dão a mando do Estado e a serviço da coletividade, cujo objetivo último não é a produção de lucro, mas sim a produção de cidadania e bem-estar social.
Dito isto, é preciso e plenamente possível migrar a discussão para uma abordagem de matiz valorativa, reflexiva e resolutiva de desempenho individual no setor público. O primeiro aspecto destaca a valorização do servidor desde a seleção até a aposentação. O segundo rejeita modelos simplificadores de incentivo e propõe um processo contínuo de aprendizagem e engajamento. O terceiro reconhece o componente humano dos serviços públicos e destaca a autonomia dos servidores como promotora do desempenho.
Todos os processos decorrentes dessa visão dependem do que atualmente se chama de gestão do desempenho, vale dizer, um componente estratégico da gestão pública por meio da qual políticas, programas, processos e procedimentos de gestão de pessoas se somam e precisam se interconectar para produzir, no agregado, o melhor resultado possível em termos de desempenho individual de servidores e servidoras públicas.
Figura 1: Gestão e Avaliação do Desempenho Individual na Administração Pública Federal
Fonte: Elaboração do autor.
Tal como se pode ver pela Figura 1, já há, hoje em dia no governo federal, um conjunto importante de programas e processos de trabalho que, no âmbito da gestão de pessoas, se relacionam positivamente com o desempenho individual de servidores e servidoras. Apesar disso, não é tarefa simples estabelecer as conexões ideais entre eles, harmonizando normativos, sistemas operacionais e bases de dados, numa sequência tal que se possa, tudo somado, chegarmos a um arranjo institucional bem fundamentado de gestão de pessoas e avaliação do desempenho individual no Brasil.
A razão disso é que o desempenho no setor público é a resultante de múltiplas determinações. Há fatores individuais, coletivos e organizacionais; há fatores internos e externos ao ambiente de trabalho; há fatores de curto, médio e longo prazos; há grande correlação com o setor ou a política pública em questão, o que inclusive torna qualquer comparação entre servidores atuando em locais distintos bastante problemática; e há até mesmo fatores desconhecidos ou não previsíveis a explicar o desempenho individual e as razões de sucesso ou fracasso de políticas e organizações. Embora necessária, a identificação e detalhamento de todos estes aspectos extrapola os limites e ambições deste artigo.
De todo modo, os elementos listados no quadro acima apontam para algumas das dimensões mínimas necessárias – ainda que talvez insuficientes – a comporem o arco de programas e processos administrativos de uma boa gestão do desempenho individual de servidores e servidoras públicas federais. Senão, vejamos.
A inovação do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) ampliou o acesso democrático ao serviço público e fortaleceu a diversidade socioeconômica, demográfica e territorial da burocracia estatal. Associado ao Currículo & Oportunidades, ferramenta digital de carregamento de informações profissionais dos servidores, viabiliza melhores decisões de alocação com base em competências de cada um e necessidades da administração.
O DFT, por sua vez, permite alinhar metas institucionais com a força de trabalho necessária para sua realização, influenciando decisões sobre concursos, capacitação e movimentação de pessoal. O mapa de entregas e serviços que resulta do DFT alimenta a definição de perfis profissiográficos, essenciais para a alocação estratégica de servidores, em sua articulação com o Currículo & Oportunidades.
Durante o estágio probatório, servidores são avaliados por critérios previstos na Lei nº 8.112/1990, como assiduidade, disciplina, iniciativa, responsabilidade e produtividade. O novo Programa de Desenvolvimento Inicial (PDI), previsto na regulamentação e unificação de procedimentos para o cumprimento dos três ciclos avaliativos comuns e nota mínima de 80% de aproveitamento para a conquista da estabilidade funcional durante o estágio probatório, estrutura a ambientação e formação inicial, conectando os novos servidores à missão institucional. Ainda durante o estágio probatório, programas como PGD, PNDP, SIDEC, MAP e Lidera.Gov consolidam a trajetória professional dos servidores ao longo de suas carreiras.
O Programa de Gestão e Desempenho (PGD) fortalece a gestão por resultados, ao substituir o controle de frequência por planos de trabalho e entregas mensuráveis. A flexibilidade entre trabalho presencial e remoto contribui para a motivação e maior produtividade, desde que alinhada a critérios de avaliação como desempenho excepcional ou execução inadequada. Como política de consequências, o PGD prevê ações corretivas nos casos de desempenho inadequado, como registro de plano de melhoria, ações de capacitação ou compensação de carga horária. Em situações mais graves, como inexecução reiterada, o regulamento prevê até a abertura de processos administrativos disciplinares, com possível demissão, mediante ampla defesa.
Por sua vez, a Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas (PNDP), via programas como o PDP e a atuação da Enap em articulação com outras escolas de governo, assegura a qualificação continuada da força de trabalho pública em alinhamento com as diretrizes institucionais estratégicas dos órgãos e entidades da APF.
A necessária reformulação do SIDEC elimina entraves do modelo anterior ao conceber a progressão baseada em colaboração e desempenho, reforçando o papel da avaliação contínua na evolução funcional. Prevê a incorporação de critérios múltiplos para a promoção, entre eles o desempenho contínuo, a qualificação profissional, a experiência acumulada e o impacto institucional, assegurando reconhecimento justo e alinhado ao mérito real. E ainda a aceleração na carreira para servidores com desempenho destacado.
Já a Movimentação e Alocação de Pessoas (MAP), embora ainda em estruturação, já impacta cerca de 10% da força de trabalho ativa e representa uma possibilidade de aprimoramento institucional quando planejada e executada com base em critérios de mérito, interesse público e equidade. Ela deve evoluir como política estratégica, reconhecendo a diversidade de trajetórias e a importância da mobilidade funcional.
O Lidera.Gov, por sua vez, desenvolve lideranças capazes de atuar estrategicamente, gerir equipes e promover inovações. Sua incorporação como critério para ocupação de funções de confiança institucionaliza a meritocracia baseada em competências reais. A consolidação dessa nova abordagem de desempenho demanda, ainda, o fortalecimento de mecanismos de governança de pessoas, com comitês permanentes, monitoramento institucional e estratégias de comunicação interna voltadas ao engajamento. Isso garante que os servidores compreendam os objetivos e impactos dos processos avaliativos, favorecendo adesão e corresponsabilização.
Por fim, o futuro Programa de Reconhecimento e Valorização reforça a importância de uma abordagem integrada e positiva da gestão de desempenho, como eixo articulador de todas as fases do ciclo laboral e catalisador de transformações na cultura institucional do serviço público federal.
Tudo somado, a combinação de elementos sucintamente apresentados neste texto permite dizer que, finalmente, o governo federal possui um bom embrião para o desenvolvimento e posterior regulamentação de processos avaliativos do desempenho individual na administração pública federal, pois eles conseguem dar materialidade a cinco premissas fundamentais para uma gestão de pessoas progressista e contemporânea. São elas: i) incentivo positivo ao desempenho; ii) ambientes de trabalho seguros e saudáveis; iii) valorização da dimensão coletiva e colaborativa; iv) avaliação contínua e cumulativa; e v) foco na resolução de causas do baixo desempenho. O desafio é superar a cultura punitivista e fiscalista, difundindo uma nova abordagem fundamentada em práticas reflexivas e resolutivas.
Não obstante, é claro que ainda são muitos os desafios enfrentados diante das imagens e narrativas negativas construídas por determinados segmentos da sociedade em relação aos servidores e ao desempenho no serviço público. Diante disso, o MGI vem trabalhando na consolidação de normas e entendimentos, bem como no amadurecimento e sofisticação de sistemas informacionais e digitais, para o fortalecimento desta nova abordagem sobre a gestão pública e o desempenho dos servidores e organizações.
Para tanto, cabe ressaltar o papel da cultura institucional no sucesso da nova política de desempenho. Valores como colaboração, confiança mútua, reconhecimento e aprendizagem contínua devem ser promovidos por lideranças públicas e reforçados por práticas organizacionais, superando o medo da avaliação e substituindo-o pelo desejo de melhoria contínua.
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José Celso Cardoso Jr. é Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e atualmente exerce o cargo de Secretário de Gestão de Pessoas no Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI).
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