15 de junho de 2025
Finanças públicas Gestão Pública

Elevar os gastos públicos é necessário para criar uma economia justa e estável

A austeridade fiscal, baseada em mitos sobre finanças públicas, impede o desenvolvimento social e econômico do nosso país. Gastar mais, e de forma inteligente, é condição para justiça e estabilidade

 

Desde os anos 2000, há imposição de regras fiscais crescentemente restritivas sobre os gastos públicos — cuja suspensão durante o período da pandemia de Covid-19 já foi devidamente esquecida — justificadas por pretextos de moralidade e/ou por metáforas que igualam finanças públicas a finanças privadas. A austeridade fiscal no discurso político vem inevitavelmente acompanhada da ideia de retidão, correção e de finanças saudáveis. Segundo Paul Samuelson, a “superstição” que prega a necessidade de orçamentos públicos equilibrados tem a mesma função “das religiões tradicionais”, qual seja, a de “amedrontar as pessoas através de mitos” de forma a aceitarem o destino a elas dado pelos sacerdotes.

Superstições frequentemente estão em contradição com a realidade e, de fato, a superstição das finanças saudáveis é o engodo que tem desencaminhado a economia brasileira por décadas. Apesar das evidências em contrário, economistas continuam advogando a “contração expansionista” e o “efeito deslocamento” (crowding out) dos gastos públicos. O caminho do equilíbrio fiscal permanente nos levaria ao crescimento econômico virtuoso por meio dos gastos e do endividamento privado. A maioria dos economistas parece acreditar que essas superstições sobre finanças públicas podem ser aplicadas ao mundo real sem causar danos. Entretanto, de fato, a negligência sobre o real funcionamento de economias monetárias tem imposto custos crescentes à sociedade das formas mais variadas: instabilidade e crise financeira; desigualdade; e degradação e negação dos bens e serviços públicos essenciais para uma vida decente para todos.

A superstição das finanças saudáveis subverte o fato de que o déficit e a dívida pública são estabilizadores da economia privada. Todo gasto de uma unidade econômica é receita de outra unidade econômica. Quando o governo gasta, gera renda para o setor privado. Quando o governo tributa, retira renda do setor privado. Se o governo gastar mais do que arrecada em tributos, incorre em déficit. Pela mesma razão, o setor privado tem um superávit quando o governo está em déficit. Os advogados das finanças saudáveis querem que a relação seja invertida: que o setor privado pague mais em tributos ao governo do que receba dele em gastos.

Qualquer ente que incorra em déficits permanentes verá suas dívidas crescendo permanentemente. No caso do governo que emite sua própria moeda, isso não é um problema visto que ele paga pelos serviços da dívida na moeda que emite. Governos que emitem moeda não dependem de receitas de qualquer natureza para honrar pagamentos. Dessa forma, a dívida pública é um porto seguro para o patrimônio privado por ser uma dívida que se pode carregar sem risco de não receber o prometido. Já o setor privado (firmas financeiras e não financeiras e famílias) assume dívidas em moeda que não emite; de fato, agentes privados emitem dívidas denominadas na moeda estatal. A dívida privada é sempre mais ou menos arriscada e sua solvabilidade e liquidez estão condicionadas pelo ambiente econômico geral e pela rentabilidade particular do emissor.

As crises financeiras recorrentes do setor privado no capitalismo — justamente deflagradas por incapacidade financeira de as firmas e as famílias honrarem dívidas assumidas em períodos de expectativas de lucros otimistas — só são debeladas pela intervenção decisiva dos gastos do governo para manter a renda e a higidez patrimonial do setor privado. Na crise financeira de 2008, por exemplo, intervenções do tipo quantitative easing foram amplamente utilizadas para salvar o valor patrimonial de bancos e de outras empresas financeiras. Na crise econômica deflagrada pela pandemia do Covid-19, a ameaça à renda e à riqueza privada foi mais ampla e requereu gastos públicos em patamares de guerra. Governos não quebraram nessas ocasiões, mas sem os déficits e dívida públicos certamente o setor privado não resistiria. A realidade dessas catástrofes aniquilou, por algum tempo, as superstições do equilíbrio fiscal.

Mas o gasto público não é só insubstituível como estabilizador da economia em momentos de crise financeira. Seu papel em prover bens e serviços públicos universais é ainda mais decisivo para a construção de uma sociedade igualitária. No Brasil, vivemos a ameaça constante de cortes de gastos em saúde e educação, assim como em outras áreas essenciais, sob pretexto de satisfazer a superstição do equilíbrio fiscal previsto pelo Novo Arcabouço Fiscal (o NAF) criado pelo Governo Lula em 2023. Enquanto o NAF prevê limites para gastos públicos, a superstição que o produziu não tem limites. Há, no governo, a crença de que o governo gasta exageradamente e que a redução do orçamento público forçará uma “melhora na qualidade dos gastos públicos”, supostamente entregando mais e melhores serviços públicos à população.

A despeito do suposto “exagero de gastos”, a verdade é que o Brasil está muito longe em gastos primários dos países capitalistas mais avançados. A título de ilustração, o gráfico abaixo mostra a evolução dos gastos primários per capita de países selecionados. Em relação à Grã-Bretanha e à Austrália, os gastos primários per capita do Brasil são cerca de ⅓ , e menos de ¼ em relação aos gastos primários per capita de Alemanha e França.

 

Gráfico – Gastos Primários Per Capita de Países Selecionados (em Dólares PPP constantes de 2021)

Fonte: Cálculo do autor com informações de FMI para despesas primárias (Public Finances in Modern History – Government expenditure, percent of GDP) e Banco Mundial para PIB em PPP constante de 2021 (GDP, PPP (constant 2021 international $) | Data).

 

Além de infundada e fantasiosa, a superstição das finanças saudáveis é ardilosa ao ocultar suas reais consequências. Sob pretexto de que os cortes tornarão os gastos mais eficientes, a superstição do equilíbrio fiscal tem, de fato, aniquilado a provisão universal de bens e serviços públicos como educação e saúde. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o governo Brasileiro gasta per capita 1/10 ou menos do que gastam países como Austrália, França, Alemanha e Grã-Bretanha. Mesmo comparando com Cuba, cuja renda per capita é muito menor, o governo do Brasil gasta cerca de ⅓ em saúde pública per capita do que é gasto pela ilha caribenha. Só por superstição alguém poderia acreditar que com tão poucos recursos o país poderia atender à saúde universal. A restrição dos gastos públicos em áreas sociais é ainda mais perversa no Brasil, país que já convive historicamente com taxas alarmantes de desigualdade. Os gastos sociais nas áreas de educação e de saúde são fortemente distributivos no Brasil, além dos efeitos que provocam na melhoria da qualidade de vida da população.

A realidade mostra que os gastos públicos têm papel insubstituível na estabilização da economia, na redução da desigualdade e na transformação produtiva, ainda mais quando temos de investir montantes significativos e de forma coordenada em infraestrutura física e social para evitar crises ambientais sem precedentes e os efeitos sociais delas. Tamanhos desafios não podem estar submetidos à instabilidade e “curto-prazismo” que guiam os investimentos privados. Ao contrário do que tem sido o discurso dos últimos governos brasileiros, a construção de um país com prosperidade compartilhada, social e ambientalmente sustentável e financeiramente estável passa, inevitavelmente, por mais gastos públicos e não menos.

 

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Fabiano A S Dalto
é Professor Titular do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná. E Presidente do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD).
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