30 de abril de 2025
Gestão Pública Orçamento

O Orçamento Público em Disputa: Rodrigo de Faria Analisa o Papel dos Poderes

Rodrigo Oliveira de Faria analisa, em entrevista ao Contexto Brasil, os ciclos de poder no orçamento público, o protagonismo legislativo e os desafios para restaurar o equilíbrio entre os Poderes

 

A entrevista publicada hoje no portal Contexto Brasil traz reflexões de um dos principais especialistas em direito financeiro e orçamento público no país. Rodrigo Oliveira de Faria é Analista de Planejamento e Orçamento, Diretor de Programa da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, doutor e mestre em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), além de ter ampla trajetória no serviço público federal, com passagens pela Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, Ministério da Justiça e Secretaria de Orçamento Federal.

Rodrigo é autor do livro Emendas parlamentares e processo orçamentário no presidencialismo de coalizão, obra que traça uma detalhada retrospectiva das instituições orçamentárias brasileiras desde o século XIX e analisa os mecanismos de alocação de recursos públicos sob diferentes regimes e conjunturas políticas. Na entrevista, ele discute os ciclos históricos de alternância entre os Poderes Executivo e Legislativo no controle do orçamento, o papel do Congresso Nacional na redefinição das regras do jogo orçamentário e os impactos da chamada dominância legislativa na gestão de recursos.

O entrevistado também aborda a crescente atuação do Poder Judiciário nas disputas orçamentárias, com destaque para o julgamento do “orçamento secreto” pelo STF, e reflete sobre os desafios contemporâneos para a construção de um modelo mais equilibrado e harmônico entre os Poderes no que tange à execução do orçamento público.

 

  1. O seu livro “Emendas parlamentares e processo orçamentário no presidencialismo de coalizão” faz uma retrospectiva sobre as instituições orçamentárias no Brasil desde o século XIX. Pode explicar para os leitores do portal Contexto Brasil que fases você identificou nesse período e quais as suas características?

Em primeiro lugar, cabe apontar que, no século XIX, não somente não havia técnica orçamentária plenamente desenvolvida nos países europeus, como também as próprias instituições orçamentárias ainda se firmavam na Inglaterra e França. Os historiadores, por exemplo, datam de 1822 o primeiro orçamento plenamente desenvolvido na Inglaterra.

No caso brasileiro, a ascendência da prerrogativa do Parlamento de tributar e de controlar o gasto público surge concomitantemente com o desenvolvimento da capacidade do governo em formular e implementar o orçamento. Tais estágios coincidem em democracias recentes, mas são separadas por gerações em países com longa história democrática.

Na perspectiva mais estritamente orçamentária, percebe-se o desenvolvimento de instituições orçamentárias, mas também a inclusão, desde 1839, de disposições de caráter permanente nas leis orçamentárias, como suspensão de provimentos de cargos vagos, vedações genéricas para despesas, extinção de ordenados e gratificações, prorrogações de vigência de outros estatutos legais. As caudas orçamentárias seriam extintas com a reforma constitucional do presidente Artur Bernardes (1922-1926), sucessor de Epitácio Pessoa. Tais disposições permanentes, estranhas à fixação da despesa e à previsão da receita, existiram no regime orçamentário brasileiro por cerca de 98 anos, desde que a primeira lei orçamentária do Império fora aprovada pelo Parlamento.

Contrariamente às Constituições de 1891, 1934 e 1946, a Constituição de 1937, do Estado Novo, trazia a vedação expressa quanto à deliberação de projetos de lei ou de emendas que resultassem em aumento da despesa (art. 64). Em sentido assemelhado, a Constituição de 1967, com redação dada pela EC nº 1, de 1969, traria a previsão de que “Não será objeto de deliberação a emenda de que decorra aumento de despesa global ou de cada órgão, fundo, projeto ou programa, ou que vise a modificar-lhe o montante, a natureza ou o objetivo” (§ 1º do art. 65). A inadmissibilidade das emendas, portanto, não se restringia ao seu aumento global, mas também setorial, programático e, mais do que isso, a qualquer alteração das dotações consignadas, dos objetivos da despesa ou de natureza. Em síntese: não havia possibilidade de qualquer alteração pelo Parlamento. As definições alocativas caberiam, tão somente, ao Executivo.

Findo o período ditatorial, as discussões na Assembleia Nacional Constituinte seriam acaloradas em torno do restabelecimento das prerrogativas do Congresso Nacional em matéria orçamentária. Nesse contexto, algumas preocupações balizaram o debate constituinte de 1987/1988, como aquela de evitar os impasses que levaram à ruptura democrática em 1964, a de que o Congresso pudesse se tornar um obstáculo à governabilidade e a de definir uma participação responsável do Congresso no processo orçamentário. Temia-se principalmente a criação de um governo que não detivesse os instrumentos necessários para governar de maneira eficiente.

Defendia-se, também, o fortalecimento da participação do Poder Legislativo na alocação orçamentária por intermédio da LDO, inovação da Constituição de 1988. Com isso, o Congresso Nacional poderia discutir a alocação global de recursos por áreas, por setores, antecipadamente, já a partir do mês de abril, em negociação com o Poder Executivo.

Destarte, relativamente às emendas parlamentares, a Carta Política de 1988 fugiria aos padrões constitucionais democráticos pregressos de ausência de disposições expressas acerca da admissibilidade das emendas, e, simultaneamente, de vedação prática da Carta de 1967-69, aproximando-se do teor, nesse particular, da Carta de 1937.

Em termos de foro para debate acerca das peças orçamentárias, a Comissão Mista de Orçamento (CMO) também foi mantida como a instância central de deliberações nessa temática. Há que lembrar que o estabelecimento da comissão mista de senadores e deputados para exame e emissão de parecer sobre o projeto de lei orçamentária se deu ainda no período do regime militar por intermédio da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, que alterou o texto da Constituição de 1967 (§ 2º do art. 66 com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969).

O texto final da Constituição de 1988, além da previsão da Comissão mista permanente, faria remissão para os regimentos internos do Congresso Nacional tanto no caso da apreciação dos projetos do PPA, LDO, LOA e de créditos adicionais, quanto da apreciação das emendas parlamentares, ampliando-se a importância das normas regimentais para a complementação dos comandos constitucionais.

Alguns destes temas são muito relevantes para a dinâmica atual do processo orçamentário, como o distanciamento da LDO em relação aos objetivos perseguidos pelos legisladores constituintes. Aliás, a LDO tem papel central em todo o amplo conjunto de mudanças da última década, pois foram exatamente as disposições normativas introduzidas nas LDOs que implementaram a maior reforma orçamentária que já assistimos, desde o advento da Constituição de 1988, ensejando a instauração do regime de dominância orçamentária do Legislativo. Em alguma medida também poderíamos dizer que as caudas orçamentárias do século XIX foram trasladadas para o seio das LDOs.

Em sentido também assemelhado, o fato de haver ampla remissão aos regimentos internos da Câmara e do Senado, no trato das matérias orçamentárias, ensejou também modificações substanciais que foram sendo sedimentadas anualmente por meio das regras estabelecidas nos pareceres preliminares do PLOA, ensejando a ampliação significativa das hipóteses de admissibilidade das emendas de relator-geral, que culminaram no escândalo do “orçamento secreto”.

 

  1. No livro você argumenta que há uma alternância entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo na dominância sobre as instituições orçamentárias. O que caracteriza essa alternância e de que forma ela impacta o processo orçamentário brasileiro?

Em primeiro lugar, cabe registrar que essa alternância em termos de prerrogativas orçamentárias atribuídas aos Poderes Executivo e Legislativo não é uma exclusividade brasileira. Quando se examina o desenvolvimento das prerrogativas orçamentárias em países como Estados Unidos, França e mesmo na Inglaterra, percebe-se que tais prerrogativas não são imutáveis ou estanques e que há uma disputa entre os Poderes no que se refere às prerrogativas de alocação orçamentária. Tais competências, portanto, variam no curso da evolução histórica, acompanhando o desenvolvimento das instituições orçamentárias e as particularidades institucionais de cada país.

No caso brasileiro, notamos que o regime constitucional de 1988, preocupado com as condições necessárias para garantia de governabilidade em um regime presidencialista multipartidário, recém-saído de um período ditatorial, assegurou prerrogativas fortes em matéria orçamentária para o Poder Executivo. Exemplos disso são restrição formal à alteração dos montantes totais de receita e despesa em matéria orçamentária e o exame dos projetos das leis orçamentárias por intermédio da poderosa CMO, centralizando esse exame no âmbito congressual.

Tais prerrogativas foram fortalecidas, na primeira década do novo regime constitucional, com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabeleceu a necessidade de que o Executivo estabelecesse a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolsos bem como a avaliação da receita e a necessidade de se estabelecer limitação de empenho e movimentação financeira para que as metas de resultado primário estabelecidas pudessem ser alcançadas.

Portanto, o primeiro período do novo regime constitucional, em matéria orçamentária, que se estende de 1988 até 2012, pode ser caracterizado como de dominância orçamentária do Poder Executivo, visto que as prerrogativas atribuídas àquele Poder asseguram que as prioridades estabelecidas pelo Poder Executivo, notadamente para alcance dos fins macroeconômicos, sejam implementadas. Ademais, as emendas orçamentárias ficam condicionadas ao cumprimento de acordos partidários em torno da composição da coalizão governativa, não havendo obrigatoriedade de sua execução em detrimento de objetivos fiscais ou programáticos mais amplos.

Contudo, a partir de 2013, há uma inflexão nesse tratamento das matérias orçamentárias. Isso ocorre a partir do estabelecimento da obrigatoriedade de execução das emendas orçamentárias individuais por meio de dispositivos incluídos nas leis de diretrizes orçamentárias. A obrigatoriedade de execução torna necessário que haja uma indicação de prioridade de execução por parte dos autores das emendas, para os casos em que há necessidade de limitação de empenho. Por isso, são criados os identificadores de resultado primário das emendas, que permitem o acompanhamento da execução das emendas individuais, em primeiro lugar, com o RP-6 (emenda individual). Na sequência, também se estabelece, na LDO, a garantia de indicação dos beneficiários a serem contemplados com as emendas individuais dos parlamentares. Essa mudança ocorre de forma gradativa, ano a ano, com a extensão do regime impositivo das emendas individuais para as emendas de bancada, com regras idênticas. Portanto, as alterações do processo orçamentário decorreram de um processo de mudança incremental, sedimentando-se na legislação ordinária tais alterações, que depois foram transplantadas para a ordem constitucional, sacramentando com maior estabilidade as novas regras do jogo orçamentário.

Por isso, procuro caracterizar o regime de dominância orçamentária do Legislativo, que se desenvolve desde 2013 até nossos dias atuais, em que o Parlamento procura limitar a discricionariedade do Poder Executivo e, simultaneamente, garantir primazia e autonomia para a execução de suas próprias preferências por meio das emendas orçamentárias. As regras de execução igualitária das emendas impositivas (individuais e de bancada) implicaram sua desvalorização enquanto instrumento de gestão da coalizão governativa. Ademais, os contornos empíricos do processo alocativo das emendas parlamentares também foram modificados, no sentido de se conferir predominância às emendas individuais, que apresentam traços de particularismo e individualismo, destinadas às bases eleitorais dos parlamentares e sem maior aderência a políticas estruturantes do governo federal. O predomínio dos montantes das emendas individuais sobre as emendas coletivas reforça o caráter difuso de aplicação de recursos, em contraposição a uma lógica partidária ou coletiva mais ampla.

Há implicações muito significativas do predomínio atribuído ao Executivo ou ao Legislativo nos contornos alocativos. Enquanto a prevalência do Executivo faculta uma alocação com viés nacional e setorial devidamente estruturado, a dominância alocativa do Legislativo tende a uma alocação dispersiva, fragmentada e regionalizada. Ambas as formas de dominância, portanto, são determinadas pelos incentivos bastante distintos a que se encontram submetidos o presidente da República, melhor intérprete do interesse nacional, e os congressistas brasileiros, submetidos a pressões e vínculos políticos regionalizados ou mais específicos.

 

  1. Como você avalia a atuação do Poder Judiciário nas questões orçamentárias brasileiras?

O Poder Judiciário foi instado a se manifestar nas questões orçamentárias mais recentemente, a partir das ADPFs 851, 854, 1.014, que trataram do chamado “orçamento secreto” ou das emendas de relator-geral do PLOA, por provocação dos próprios partidos políticos. Ou seja, foram os partidos políticos que adentraram com questionamentos junto à Corte Suprema, ensejando na análise e no julgamento da ADPF 854, em dezembro de 2022.

A partir daí, mediante provocações também interpostas junto ao STF por amigos da corte (amicus curiae), o STF instaurou procedimentos para acompanhar o cumprimento da sentença anterior exarada pela Corte. Assim, nota-se que o próprio STF foi provocado a analisar as mais recentes disputas orçamentárias brasileiras e a arbitrar um equacionamento da matéria submetida à sua análise. Isso não impede que se reconheça a necessidade de haver uma certa autocontenção dos Poderes da República no uso de suas atribuições, de forma a não gerar hipertrofias que possam comprometer o regular funcionamento das instituições democráticas.

Por outro lado, cabe apontar que os atores atuam estrategicamente a partir dos movimentos e sinalizações feitos por outros atores e que medidas determinadas pelo STF podem implicar em posturas defensivas e em mudanças alocativas por parte do Poder Legislativo. Um exemplo é que, caso os parlamentares percebam que há regras muito restritivas em torno das suas alocações, sejam coletivas ou individuais, isso pode ensejar um crescimento da alocação realizada por intermédio de transferências especiais (popularizadas como “emendas pix”), que apresentam maior facilidade alocativa.

 

  1. Na sua opinião, quais ajustes precisam ser feitos na gestão orçamentária brasileira para que cada poder da República e os entes federados exerçam suas atribuições de forma harmônica?

Na minha avaliação, o processo orçamentário brasileiro encontra-se em um momento de maior disfuncionalidade, pelo conjunto de incentivos a que se encontram submetidos os atores políticos que possuem forte influência alocativa. O Legislativo avançou sobre prerrogativas importantes de execução orçamentária, que são atribuições clássicas do Poder Executivo, com o consequente enfraquecimento deste último. Não me parece que exista qualquer espaço para um retrocesso, por parte do Legislativo, em relação às prerrogativas que foram conquistadas. Isso, por outro lado, gera incentivos para que o Poder Judiciário procure arbitrar limitações ao avanço do Poder Legislativo em matéria orçamentária, com potenciais crises institucionais entre os Poderes da República.

Sem dúvida, esforços institucionais precisam ser feitos para que as prerrogativas de cada Poder sejam exercidas de acordo com suas atribuições constitucionais, mas não parece nada trivial identificar como implementar mudanças que permitam uma atuação mais aderente com a harmonia estabelecida na Constituição Federal de 1988. O pêndulo das prerrogativas orçamentárias oscilou favoravelmente ao Poder Legislativo e não há cenário, exceto por meio da irrupção de crises institucionais, que permita antever modificações significativas no horizonte de curto ou médio prazos, com todas as suas consequências já apontadas.


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