19 de maio de 2025
Política externa Soberania

Saldos de uma visita à China

A visita oficial à China rendeu acordos estratégicos em diversos setores e abriu caminho para avanços logísticos, tecnológicos e monetários, com potencial de transformar o comércio e desenvolvimento do Brasil

 

A recente visita do Presidente da República e extensa comitiva governamental à China (após um périplo asiático) comprovou a extrema relevância e potencial que o gigante da Ásia tem para as perspectivas atuais e futuras do Brasil. A lista de 20 atos firmados entre os dois governos dá testemunho de uma possibilidade singular para geração de progresso socioeconômico mútuo. 

Entre memorandos de entendimento, acordos de cooperação, declarações de interesse comum e cartas de intenções, os diferentes instrumentos de trabalho assinados aprofundam a relação Brasil-China neste momento em que a geopolítica se inclina a um novo tipo de bipolaridade, especialmente em função da guerra comercial tarifária promovida pelos Estados Unidos. Salientar a relevância para o Brasil de manter portas bem abertas na China nunca será um exagero, menos ainda nos dias atuais. 

De forma técnica e estrategicamente correta, o governo brasileiro aproveitou a visita para estreitar a cooperação com a China em uma ampla gama de interesses: infraestrutura, agricultura e pecuária, mineração, comércio internacional, dados especiais, finanças, meio ambiente, inovação tecnológica, energia. Um cardápio completo de agenciamentos e indicações para políticas binacionais de alta efetividade. 

 

Possibilidades e limites

Entretanto, como em tudo que envolve as relações internacionais, o diabo mora no detalhe. Neste caso, os documentos assinados são em sua maioria instrumentos de intenção futura. A efetividade depende de uma série de fatores, na maioria dos casos. Mesmo o anúncio de R$ 27 bilhões em novos investimentos chineses no Brasil deve ser visto com cautela, dado que parte deles virá de empresas e seguirá planos e prazos de seus conselhos. Por outro lado, alguns dos setores que receberão os investimentos ainda carecem de estruturação no Brasil. Portanto, não se trata de minimizar a importância do anúncio, mas de temperar as expectativas. 

Um exemplo de algo que tem tudo para sair quase imediatamente é a chegada de US$ 1 bilhão para produção de combustível de aviação a partir de cana de açúcar, e a criação de um centro de pesquisa e desenvolvimento em energia renovável no Brasil. São áreas plenamente estruturadas no país, que contam com profissionais de alta capacidade, empresas e universidades maduros para assumir o desafio. 

A ideia de se criar na Dataprev (empresa pública vinculada ao Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos) um núcleo de inteligência artificial em parceria com a chinesa Huawei parece ser uma perspectiva longínqua, visto que a própria tecnologia ainda está em fase de inovações radicais, com uma intensa disputa pelo modelo que hegemonizará o mercado e quase tudo ainda sob sigilo industrial. Sendo assim, provavelmente a Dataprev aprenderá com a Huawei um rudimento de IA que deverá ficar limitado a aplicações incapazes de gerar impactos profundos na economia. Portanto, talvez seja inexato classificar este tipo de acordo como uma transferência tecnológica. 

Dentre tudo, aquilo que talvez possa ter um impacto realmente extraordinário é a possível concretização de um antigo sonho do Brasil: a construção de uma saída para o Oceano Pacífico por via férrea. Caso o projeto chinês para conectar o litoral brasileiro ao porto peruano de Chancay (feito com apoio chinês) realmente saia do papel, será transformador para a economia brasileira, assim como para a América do Sul e quiçá para o comércio mundial. Ocorre que a ligação transoceânica já foi anunciada diversas vezes nos últimos 20 anos, e nunca foi sequer iniciada. 

 

Questão monetária

Contudo, um aspecto da visita brasileira à China deveria merecer dos analistas maior atenção. (E não surpreendentemente, o tema vai passando em branco na imprensa). Trata-se do acordo entre o Banco Central do Brasil e o Banco Popular da China para permitir o swap monetário entre o Real e a moeda chinesa Yuan Renminbi. Isto pode vir a ter um impacto maior do que o previsto, dadas as condições atuais do mundo. 

Acordos de swap monetário são um instrumento comum e regular entre os países. Eles preveem uma troca direta entre as moedas nacionais sem uso do dólar (ou diretamente com o dólar, se o acordo é com os EUA). O Brasil já tem acordo desse tipo com os EUA, por exemplo, mas pelo fato de que aquele é o país emissor da moeda de curso mundial, sequer é mencionado ou estudado. 

Porém, o acordo feito com a China pode significar a abertura de uma via para desdolarizar as trocas comerciais e financeiras entre Brasil e China. Ficou previsto que os dois países terão contas especiais abertas no banco central um do outro, e um limite de R$ 157 bilhões para as transações a compensar em moeda nacional. É um volume relevante, embora pudesse ser maior. 

Isto pode ser extraordinário porque, embora antes fosse claro que os Estados Unidos coibiriam qualquer tentativa de desdolarização (Trump fez ameaças públicas contra isto neste ano de 2025), hoje talvez já não seja assim. O motivo é simples: ao chamar a China para uma guerra comercial, apostando que o país asiático pediria arrego, Trump viu-se esvaziado em seu desejo de hegemonia absoluta. A China não só não arredou pé de sua posição como fez campanha mundial contra os EUA, tarifou em resposta com percentuais também exagerados e só aceitou negociar depois que os EUA mencionaram a possibilidade de um novo acordo. O mundo viu os Estados Unidos se comportando não mais como um poder quase absoluto, mas como um poder que precisa dialogar, apesar de ser ainda muito forte. 

Talvez seja a hora de apontar para uma desdolarização lenta, gradual e segura no comércio internacional. Se será assim, ninguém sabe, mas o acordo entre o BCB e o banco chinês guarda esse potencial. Seria perfeito se com ele viesse a formação de um instrumento de crédito a juros internacionais regulados visando oferecer ao empresariado brasileiro uma alternativa às taxas escorchantes que o próprio Banco Central nos impõe. Mas isto deve ficar mais no campo dos limites do que das possibilidades.

 

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Fausto Oliveira é jornalista de economia com experiência nacional e internacional em setores industriais e infraestrutura.
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