A tragédia no RS revelou falhas estruturais e fiscais, mas também ensinou: investimentos públicos salvam vidas, impulsionam a economia e exigem novo pacto para enfrentar desastres climáticos crescentes no Brasil
Recentemente completou um ano a grande enchente que assolou o estado do Rio Grande do Sul em 2024. Apesar do saldo devastador deixado por um evento climático absolutamente incomum, o estado tem conseguido se recuperar a um ritmo mais rápido do que se poderia esperar, graças ao consistente aporte de recursos federais. De acordo com o site oficial, R$ 89,8 bilhões já foram pagos ou concedidos em dezenas de iniciativas de órgãos e entidades federais.
Sem dúvida, estes aportes ajudam a explicar, em grande medida, porque o Rio Grande do Sul registrou em 2024 um crescimento econômico superior ao crescimento nacional. O estado cresceu 4,9%, enquanto o país registrou 3,4% de aumento do PIB. A questão humanitária justifica todo este esforço fiscal e político, e está acima de toda e qualquer consideração. Mas reconhecendo-a, o país tem a chance de tirar uma outra lição desta tragédia, um aprendizado de política econômica e as relações entre economia e vida social.
Antes das enchentes, não era incomum que o governo do Rio Grande do Sul divulgasse como uma grande qualidade de sua gestão a austeridade fiscal. Com uma grande dívida pública para com a União, o governo era apoiado pela maioria dos meios de comunicação em suas ações de contenção de despesas, redução de investimentos, cortes orçamentários e privatizações. E embora seja impossível apontar relações perfeitamente diretas entre uma coisa e outra, sabe-se que a infraestrutura urbana deprecia ao longo do tempo. E quando não se investe o mínimo para dar manutenção, colhem-se disfuncionalidades como ocorreu nos sistemas de drenagem dos rios gaúchos, da mesma forma como já havia acontecido em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e em diversas outras localidades do Brasil.
A ABDIB (Associação Brasileira das Indústrias de Base e Infraestrutura) divulga há anos um estudo em que defende um investimento mínimo nacional de 4% do PIB para manter o estoque de infraestrutura no país, contendo as depreciações. Sabe-se que o Brasil não chega perto de investir esse montante há muitos anos, o que contribui para a ocorrência de tragédias como a que assolou o RS em 2024. Muito embora aquele caso específico tenha elementos de excepcionalidade, pelo volume extraordinário de chuvas em pouco tempo, é correto afirmar que a carência de investimentos em infraestrutura terá contribuído para piorar o que já seria ruim.
Distorções do federalismo
Porém, outros fatores devem entrar na conta das lições desta tragédia. Um deles, inexplicavelmente pouco comentado no Brasil, é a participação dos municípios como entes autônomos da federação. Em muitos casos, antes e depois do que aconteceu no RS, percebe-se como recursos federais deixam de ser aplicados, ou são mal aplicados, por falta de estrutura técnica e profissional em prefeituras que, por lei, têm que cumprir com uma parte dos planos de recuperação de desastres.
Os exemplos se avolumam: ora se trata de uma desapropriação de terreno para permitir obra, ora um laudo técnico de saúde pública, ou quem sabe um plano diretor com designação de áreas especiais, ou ainda a necessidade de um corpo técnico qualificado para cumprir função especificamente municipal. Em dezenas de casos, as prefeituras municipais não contam com toda esta estrutura. Mas como a lei obriga que sejam elas a dar conta de diversas etapas, tem-se os casos absurdos de recursos disponíveis que não podem ser aplicados por algum entrave de ordem burocrática. Corrigir estas distorções, atribuindo mais poder administrativo e decisório aos estados e à União sobre o território de municípios, é uma medida importante diante do agravamento de catástrofes climáticas. Afinal, em qualquer lugar do Brasil onde elas ocorram, sempre será em um território municipal, e a tendência é a repetição de situações absurdas.
Disponibilidade de recursos
Entretanto, aspectos administrativos da gestão pública não têm o condão de explicar a sucessão de tragédias urbanas relacionadas a desastres climáticos. O Brasil tem um problema de política econômica que, se não for enfrentado, nos deixa expostos ao perigo.
Conforme aconteceu a tragédia do RS, foram liberados recursos via crédito extraordinário. Ocorre que isto é o que se pode fazer após a tragédia. Mas e a prevenção? E a tão propalada adaptação do Brasil ao novo contexto de eventos extremos? Estas são hipóteses virtualmente banidas do debate, dado que há uma interdição ideológica na discussão sobre o uso de recursos fiscais.
Se não houvesse a interdição ideológica (ou quando ela deixar de existir), o Brasil teria que estabelecer um novo sistema para gerir sua economia pública. Infraestrutura, como mencionado acima, diz respeito à possibilidade de manutenção da vida social com qualidade. No limite, infraestrutura se relaciona com a preservação da vida humana. Assim sendo, é necessária coragem para criar um novo acordo político para gestão de política econômica no Brasil. Um novo acordo que poderia, talvez, excluir os investimentos dos limites de gastos da União e do cálculo da meta de resultado primário.
Quando houve a tragédia do Rio Grande do Sul, muitos disseram que seria necessário um Plano Marshall para o estado. Com números muito mais modestos, o RS teve seu Plano Marshall, com um expressivo resultado em termos de PIB estadual. Mas talvez o que o Brasil deva ousar pensar a partir daquela trágica experiência não seja um Plano Marshall, e sim um verdadeiro New Deal. O tamanho do desafio não é menor do que isso.
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Fausto Oliveira é jornalista de economia com experiência nacional e internacional em setores industriais e infraestrutura.
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