Governos que emitem sua própria moeda não enfrentam restrições financeiras reais. A limitação ao gasto público é política, e não fiscal, desmistificando a suposta dependência de impostos ou empréstimos privados
A visão predominante entre economistas é a de que o governo financia seus gastos obtendo receitas tributárias ou, se tiver déficits, tomando empréstimos junto ao sistema financeiro privado. A alternativa a essas fontes de moeda seria o horror da expansão monetária causadora da inflação. É verdade que a maioria dos economistas aceita que em certas circunstâncias o governo tenha déficits, contudo a maioria argumenta que déficits públicos deveriam ser temporários. Mesmo economistas “keynesianos” argumentam que déficits públicos permanentes seriam insustentáveis porque gerariam expectativas de que o governo não seria capaz de honrar seus compromissos. Os governos estariam assim sujeitos à confiança dos mercados para rolar a dívida pública a taxas de juros baixas. Governos que não reduzirem gastos e dívidas teriam que pagar juros extravagantes ou declarar falência.
A realidade das finanças de governos monetariamente soberanos é bem distinta do sumário acima. Governos monetariamente soberanos não estão limitados por receita tributária ou por financiamento oriundo do setor privado para realizar gastos. Governos monetariamente soberanos emitem sua própria moeda para realizar gastos.
A dificuldade para percebermos isso é que a maior parte do meio de pagamento que usamos no dia a dia é, na verdade, uma dívida bancária: os depósitos à vista que usamos para fazer pagamentos através de transferências entre bancos. Se precisamos fazer pagamentos superiores à quantidade de depósitos à vista que temos na conta corrente, pedimos empréstimos ao banco que emite uma dívida contra si mesmo e financia nosso gasto deficitário. Mas se queremos trocar nossos depósitos à vista por papel-moeda, o banco precisa acumular a moeda emitida pelo banco central. O sistema monetário é constituído, portanto, pela moeda bancária, os depósitos à vista emitidos pelos bancos, e pela moeda estatal, reservas bancárias e papel moeda emitidos pelo banco central.
Em nossa economia, a moeda emitida pelo governo através do banco central, a moeda estatal, é a única aceita em pagamentos de tributos e outros pagamentos ao governo (inclusive a compra de títulos públicos que o governo emite). Enquanto bancos, como vimos, também emitem moeda bancária, suas dívidas são conversíveis em moeda estatal (quando resgatamos depósitos à vista em papel-moeda, por exemplo) e as compensações entre bancos e destes com o banco central são realizadas em moeda estatal. Disso decorrem duas consequências importantes:
(1) tudo que estiver disponível à venda em moeda estatal pode ser pago com a moeda emitida pelo governo; e
(2) os agentes privados só podem fazer pagamentos ao governo com moeda previamente emitida pelo governo.
A moeda emitida pelo governo entra na economia única e exclusivamente quando o governo realiza pagamentos, sejam eles pagamentos de bens e serviços – como pagamento de professores, médicos, como pagamentos por obras e construções –, ou como transferências para aposentados e de juros, ou como compras de ativos financeiros. O gasto realizado pelo governo entra no sistema bancário de duas formas simultaneamente: como ativo para os bancos na forma de reservas bancárias e como passivo dos bancos na forma de depósitos bancários em favor do beneficiário do gasto público. As reservas bancárias são ativos dos bancos e passivo do banco do governo (banco central); os depósitos bancários são ativos dos clientes dos bancos e passivos dos bancos comerciais. Assim como os clientes dos bancos podem usar os depósitos para fazer pagamentos aos próprios bancos e a outros clientes dos bancos, os bancos por sua vez usam as reservas bancárias para fazer pagamentos entre si e ao governo (Tesouro e banco central).
Observe que qualquer agente privado, bancos ou público não bancário, só pode pagar tributos se o governo tiver realizado gastos previamente e gerado reservas bancárias. Além disso, para os bancos acumularem reservas, é preciso que o governo tenha realizado um déficit, uma vez que o déficit será exatamente a diferença entre a moeda estatal criada pelo gasto público menos a moeda estatal eliminada pela tributação. Da mesma forma, títulos só poderão ser adquiridos se o governo realizar déficits fiscais que deixarão no sistema bancário reservas suficientes para a compra de títulos pelos bancos. As reservas bancárias são créditos tributários ainda não recolhidos.
O banco central, por seu turno, monitora as reservas acumuladas no sistema bancário, monitora a liquidez segundo o jargão dos economistas. O excesso de reservas nos bancos para além do desejado pelos bancos estimulará os bancos a demandarem aplicações rentáveis para o excesso de reservas. Na insuficiência de reservas, os bancos precisarão tomá-las emprestado ofertando títulos rentáveis. Na ausência de atuação do banco central, a demanda (oferta) de títulos pelos bancos para aplicação rentável pressionará as taxas de juros para baixo (para cima). A oferta (demanda) de títulos públicos de curto prazo pelo banco central tem a tarefa de satisfazer as necessidades de reservas (títulos) do sistema bancário de forma a não haver pressões sobre a taxa de juros de curto prazo. Dessa maneira, a emissão de títulos públicos pelo Tesouro nada mais é do que uma operação necessária para que o banco central tenha instrumentos para fixar a taxa de juros da política monetária. A emissão de dívida pública pelo Tesouro e sua compra e venda no mercado aberto pelo banco central resulta dos efeitos da política fiscal sobre as reservas bancárias. Daí a necessidade constante de coordenação das políticas monetária e fiscal, do Tesouro com o banco central, de forma que os déficits fiscais não pressionem a taxa de juros para baixo nem os superávits levem a taxa para acima do desejado pelo banco central.
Diante disso, fica evidente que o governo não depende nem de receitas tributárias nem do financiamento do setor privado para gastar. Isso não significa que não existam limites concretos para o gasto do governo. O limite ao gasto do governo é a possibilidade de expansão da oferta de bens e serviços em resposta à demanda. Até o limite do pleno emprego não existe restrição “real” ao gasto do governo em sua própria moeda. De fato, esse é um limite tanto para o gasto do governo quanto para o do setor privado. Para além do nível de pleno emprego, qualquer gasto adicional, público ou privado, pode levar à inflação.
Assim como qualquer outro agente da economia nacional, mesmo um governo monetariamente soberano enfrentará restrições financeiras se desejar comprar bens, serviços e ativos denominados em outras moedas que não a sua própria. Portanto, quanto menos endividado em moeda externa e desde que não opere sob um sistema de câmbio fixo, tanto maior é o espaço do governo para operar a política econômica, na medida que não se compromete com pagamentos fixos em moedas que não emite.
Finalmente, existe, claro, a possibilidade de autoimposição de limitações aos gastos pelo próprio governo por razões políticas. Governos podem querer favorecer certos grupos ou classes sociais em detrimento de outras por entenderem que isso lhes garantirá financiamento eleitoral, ou apoio midiático, ou qualquer outro tipo de apoio político que considere útil ao exercício do poder. A escolha política da restrição fica evidente quando um governo aplica critérios limitantes para certos gastos, mas não para outros.
A partir dessa descrição do funcionamento do nosso sistema monetário, consideramos a hipótese das restrições impostas pelo mercado ao governo como altamente irrealista. Na verdade, a ideia de que os governos monetariamente soberanos dependam dos impostos dos ricos e/ou do financiamento provido por mercados financeiros privados é mera ideologia neoliberal. Sob o manto dessa ideologia, restrições auto impostas como o teto de gastos são erigidas para constranger os gastos socialmente orientados dos governos. De fato, a prática das políticas neoliberais tem sido a de direcionar o poder financeiramente ilimitado dos governos para irrigar os canais de acumulação dos proprietários de capital. As trilionárias somas de dinheiro emitidas pelos governos ao redor do mundo, seja nas diversas operações de socorro ao sistema financeiro e empresas na crise financeira de 2008, seja durante a pandemia do coronavírus, são apenas os eventos mais eloquentes demonstrando que os governos jamais poderiam ter operado os socorros com recursos de tributação aos ricos ou de financiamentos vindos de bancos ameaçados pela bancarrota.
Como ideologia, o mito da dependência do governo de fontes privadas de dinheiro serve para encobrir a prática das políticas neoliberais de colocar o poder financeiro do governo a serviço da acumulação financeira do setor privado. A “financeirização” é, portanto, um projeto primariamente conduzido pelo Estado que promove interesses privados rentistas e não decorrente de ações privadas que impedem a ação do Estado.
Fabiano A S Dalto é Professor Titular do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná. E Presidente do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD).