Diariamente os meios de comunicação repercutem preocupações de agentes do mercado financeiro com as contas públicas. As motivações dessas manifestações podem ser diversas: influenciar os preços de compra e venda de ativos; pressionar os governantes a implementarem agendas que interessam determinados setores empresariais; impedir que determinados serviços públicos sejam oferecidos com qualidade e abrangência capazes de ameaçar as margens de lucro de prestadores privados de bens e serviços; e até mesmo preocupações sinceras com a capacidade do poder público em honrar seus compromissos.
Neste artigo, convido os leitores a refletirem sobre esta última hipótese, considerando quatro questões:
1) A trajetória da dívida pública brasileira é preocupante?
2) Qual despesa tem maior potencial para ser reduzida?
3) O que pode ser feito para ampliar as receitas?
4) É desejável igualar receitas e despesas públicas?
Sobre a primeira questão, o gráfico a seguir apresenta a trajetória da Dívida Bruta do Governo Geral em proporção ao Produto Interno Bruto nas dez maiores economias mundiais.
Nota-se que: a relação dívida/PIB brasileira se encontra no mesmo patamar de China e Índia; e nos demais países, com exceção da Alemanha, a relação dívida/PIB é significativamente superior. Não há, portanto, nada de alarmante na trajetória da dívida brasileira.
Ainda assim, o trato responsável da coisa pública exige permanentes esforços de redução de despesas que tenham baixa capacidade de melhorar a qualidade de vida da população. Isso nos leva à segunda questão: qual despesa tem maior potencial para ser reduzida? Uma conta simples pode ajudar a pensarmos em ordens de grandeza. Como mais de R$ 3 trilhões em títulos da dívida brasileira estão indexados à taxa Selic, cada vez que o Copom aumenta 1 ponto percentual dessa taxa significa um aumento direto de mais de R$ 30 bilhões por ano nas despesas públicas. Isso parece não preocupar os analistas do mercado financeiro. Mesmo com o Brasil praticando uma das maiores taxas de juros reais do planeta, seguem cobrando cortes nas despesas que viabilizam a prestação de serviços para o conjunto da população. Para fins de comparação, alguns exemplos das dotações do orçamento da União em 2025, por função: comunicações (R$ 3,3 bi), direitos da cidadania (R$ 2,8 bi), urbanismo (R$ 2,8 bi), cultura (R$ 2,6 bi), saneamento (R$ 1,9 bi), energia (R$ 1,3 bi) e habitação (R$ 0,8 bi). Aperfeiçoamentos de gestão são desejáveis e devem ser buscados em todas as políticas públicas. Mas se a preocupação for reduzir despesas em larga escala, nada se compara aos montantes que poderão ser economizados com a redução da taxa básica de juros.
Quando confrontados com esses números, os analistas do mercado financeiro costumam argumentar que para o Copom baixar a taxa Selic é preciso que o governo faça primeiro o “ajuste fiscal”. Para não afetar a rentabilidade dos detentores de títulos públicos, a recomendação padrão desses analistas é reduzir as chamadas “despesas primárias”, que não incluem justamente as despesas com juros. Embora essa manobra argumentativa tenha evidentes interesses não declarados, cabe lembrar que orçamentos são compostos por receitas e despesas. Logo, se o objetivo for igualar receitas e despesas primárias, uma alternativa óbvia para não prejudicar a prestação dos serviços públicos é ampliar as receitas primárias. Isso nos remete à terceira questão: o que pode ser feito para ampliar as receitas?
Novamente, as ordens de grandeza são eloquentes: os benefícios tributários estimados para 2025 totalizam R$ 543,6 bilhões. É mais do que a soma das dotações orçamentárias previstas em 2025 para saúde (R$ 209,9 bi), educação (R$ 177,5 bi), defesa (R$ 96,2 bi), agricultura (R$ 31,6 bi), segurança pública (R$ 16,7 bi) e indústria, comércio e serviços (R$ 7,1 bi). Estivessem os analistas do mercado financeiro de fato preocupados em igualar receitas e despesas, seria de se esperar que incluíssem em suas recomendações uma redução expressiva desses benefícios.
Outra providência, tão ou mais importante que essa, é aproximar o sistema tributário brasileiro do padrão adotado nos países considerados desenvolvidos. Na Dinamarca, a renda e o patrimônio representam, em conjunto, 67% da arrecadação total de impostos. Nos Estados Unidos, 60%. Na média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 40%. No Brasil, apenas 23%. Por outro lado, somos vice-campeões mundiais em tributação sobre o consumo. No Brasil, a participação relativa dos impostos que incidem sobre o consumo atinge 50% da arrecadação total. A média da OCDE é de 32,4% e nos EUA, 17%.
Outra frente que precisa ser considerada como estratégia de ampliação das receitas é estimular o crescimento econômico. Com taxas de juros civilizadas, a ampliação dos investimentos públicos e da capacidade de consumo da população impulsionarão a demanda agregada, o que estimulará os investimentos privados e o aumento da produtividade da economia. Isso se refletirá na ampliação da arrecadação tributária e na continuidade de uma trajetória estável na relação dívida/PIB. Com planejamento adequado, a ampliação da demanda pode ser acompanhada pelo aumento da oferta, sem que haja impactos relevantes sobre a inflação. Investimentos em infraestrutura, por exemplo, contribuem para a redução de custos de vida e de produção.
Chegamos então à última questão: é desejável igualar receitas e despesas públicas? Para responder esta pergunta cabe lembrar que a humanidade já usa formas variadas de crédito há mais de 5 mil anos. Isso permite que as famílias e empresas gastem mais do que arrecadam em determinados períodos, o que pode ser necessário ou desejável para que tenham receitas maiores do que despesas em outros períodos. Além disso, é preciso diferenciar as lógicas dos orçamentos privados e públicos. Um princípio básico de contabilidade é que todo ativo corresponde a um passivo de igual valor. Isso significa que para o conjunto das famílias e empresas situadas em um determinado país possam operar com orçamentos superavitários, é preciso que o governo opere com orçamento deficitário, supondo contas externas equilibradas, para simplificar. É por isso que os países trabalham com orçamentos deficitários, o que possibilita a elevação da riqueza das suas famílias e empresas.
Mas isso não significa que os governos devam gastar sem critérios. Para importar bens e serviços que não estejam disponíveis para venda na sua própria moeda, por exemplo, é preciso que o país disponha de reservas internacionais. Por isso é importante exportar. Caso contrário, pode-se entrar em um ciclo de endividamento em moedas emitidas por outros países e aí sim ter problemas para honrar compromissos. Para que um gasto público seja funcional é preciso considerar também os custos de oportunidade e os possíveis impactos inflacionários.
A força de trabalho, os recursos naturais, as tecnologias disponíveis, a capacidade de gestão e a disponibilidade de divisas internacionais são recursos escassos. Logo, demandam planejamento e definição de prioridades para que não sejam subaproveitados nem desperdiçados em atividades com baixa capacidade de melhorar o bem-estar do conjunto da população. Sem planejamento adequado, o resultado óbvio é a descoordenação de ações no tempo e no espaço, o que gera gargalos na oferta de infraestrutura e de outros requisitos necessários para as atividades produtivas, podendo resultar em pressões inflacionárias.
Em resumo, preocupações sinceras com a capacidade do poder público em honrar seus compromissos não podem se limitar ao discurso simplório de redução de despesas primárias. A construção de um país mais próspero e inclusivo exige que as políticas públicas disponham de recursos condizentes com os planejamentos setoriais e regionais, para que serviços de qualidade e com escala adequada possam ser prestados. Assim o país poderá crescer elevando a qualidade de vida do conjunto da população.